Azagaia para herói nacional?

Azagaia para herói nacional?

Azagaia morreu, sim. Paradoxalmente, desde o dia em que o seu falecimento foi noticiado e ao longo do seu velório e funeral, parece ser convicção generalizada que um novo herói nacional acabou de nascer, personificado exactamente na figura do Azagaia. Novamente, o debate sobre a condição de heroicidade e a sua homologação merece ser reacendido e devidamente discutido na esfera pública moçambicana. Quem são os nossos heróis nacionais? Qual é a sua natureza? Quem pode ser herói? Necessitamos de heróis? Porquê ou para quê? O que é um herói nacional, no contexto moçambicano dos dias de hoje?

Embora a sua definição permaneça invariavelmente subjectiva, sói dizer-se que um herói é, em essência, aquele que se destaca numa luta perseverante e teoricamente impossível para qualquer cidadão comum, superando obstáculos reais e imaginários, até alcançar os fins desejados contra todas as adversidades e expectativas. Nesse desiderato, podem existir diversos tipos de heróis. Uns que se destacam por melhorar vidas numa escala exponencial e outros cujas realizações têm alcance mais localizado ou limitado. No entanto, quase todos com proezas intelectual ou corporalmente épicas de um nível de coragem muito fora do alcance de pessoas medianas. Quase todos eles perseguem objectivos maiores do que si mesmos e nunca se desviam dessa visão.  Azagaia viveu lutando musicalmente contra aquilo que considerava vícios e excessos dos poderes políticos vigentes e da sua elite acompanhante, desde a flor da sua juventude e de forma consistente. Mesmo sendo uma pessoa comum, ele indubitavelmente transcendeu extractos sociais e gerações, dentro e fora de Moçambique.

Heróis são necessários por inúmeras razões. Das que mais se destacam, menção especial pode ir para a sua dedicação inabalável a uma causa que serve de inspiração para todas as outras pessoas. Em essência, o chamamento recorrente para sermos as melhores versões de nós mesmos onde quer que vivamos ou em tudo o que fizermos. Um herói é uma força motivadora, que nos inspira a pensar, fazer e viver de forma mais corajosa, ousada e determinada. Azagaia moveu massas nos seus shows musicais, em todo o país e além-fronteiras. Morreu a cantar tanto sobre as nossas desigualdades sociais, sobre a corrupção endémica, sobre os abusos de poder dos nossos governantes, como também sobre a urgência de assumirmos, todos e cada um de nós, os nossos próprios destinos como cidadãos e patriotas. Já depois de Azagaia ter falecido, as inúmeras vigílias em sua homenagem (doméstica e internacionalmente), o seu velório e o seu funeral arrastaram multidões como nunca dantes visto na nossa história recente.

Heróis são pessoas comuns, obviamente, mas com feitos extraordinários. É precisamente esse carácter extraordinário que deve ser debatido, nas discussões recorrentes sobre os nossos heróis nacionais. Como também sói dizer-se, as pessoas são conhecidas pelos heróis que coroam ou celebram. As pessoas que são escolhidas ou honradas como heróis e as acções que são tidas como heróicas revelam muito do que nós, como sociedade, comunidade ou nação, valorizamos e admiramos. Aqueles homens e mulheres que se destacaram no combate ao colonialismo português, na defesa da pátria ou na luta pela democracia, nos anais cimeiros da cultura ou do desporto, por exemplo, são os que se foram imortalizando na história do nosso país e devidamente consagrados na cripta dos heróis moçambicanos. Homens e mulheres cujas acções influenciaram a nossa história para patamares outros, impossíveis de serem atingidos se não se tivessem sacrificado, lutado ou se dedicado por eles. Curiosamente, quase todos os que jazem na cripta dos heróis moçambicanos provém, em desproporcional maioria, mais dos meandros políticos do que das ciências, das artes ou do desporto. Não pode a verticalidade, a representatividade e a legitimidade de Azagaia ser o ponto de viragem para a definição daqueles que consideramos terem potencial, substância e relevância para serem os nossos heróis nacionais contemporâneos?

Pelo acima exposto, em Moçambique Azagaia é um herói de facto. O que a sua vida e obra fizeram no país e pelo país foram consequência directa do seu carácter invulgar, da sua consistente força de vontade e da sua capacidade intelectual sem paralelo. Não foi resultado de um acidente ou circunstância histórica específica, como alguns dos heróis oficialmente consagrados na nossa cripta. Ademais, o que fundamentalmente distinguiria Azagaia dos outros tantos – heróis ou heroicizados – seria a forma e o momento em que ele morreu. Felizmente, Azagaia não sucumbiu aos perigos de celebração de gigantes cujo carácter em vida parecem anular (ou ter anulado) as suas proezas heróicas. Pelo contrário, Azagaia inspirou pela forma mundana, simplista e altruísta como vivia a sua vida, apesar da profundidade da sua mensagem, da dimensão da sua obra e do alcance da sua intervenção. Morreu incólume ao vício dos egos ou às manias de grandeza daqueles que se dizem ser mais e melhores moçambicanos do que os outros. Provavelmente seja por isso que diversos círculos políticos e extractos sociais estejam agora a propor a canonização do Azagaia como herói nacional. Indubitavelmente, a morte de Azagaia divinizou a sua experiência de vida – também feita de privações, de sofrimento e de sacrifício, como todo e qualquer moçambicano comum – tornando a sua empatia transcendental e o seu legado o necessário e inadiável estrume para transformar, a todos os níveis, a sociedade moçambicana e o país que queremos ser.

#Edgar Barroso

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