É Professor Catedrático de sociologia e estudos africanos na Universidade de Basileia, na Suíça. Nasceu em Gaza, mas a vida académica obriga-o a nascer, quase todos os dias, em congressos, aulas e seminários em todo o mundo. Possui um pensamento próprio, um pensamento que procura, muitas vezes, espreitar, por outras janelas, o país que somos e o país que queremos ser. Encontrava-se no Mali quando aceitou conversar com o Novo Postal e, como não deixaria de ser, a dar aulas. Elísio Macamo conversa com o Novo Postal.
NP: Professor, há um debate a nível nacional sobre um possível “terceiro” mandato do Presidente da República. O que pensa sobre isso?
EM: Não creio que haja realmente um debate sobre esse assunto. Um debate implica uma certa transparência. Quem quer o terceiro mandato vem a público e diz que o quer, porquê e o que tenciona fazer para lá chegar. E quem não considera boa a ideia apresenta os seus argumentos e a gente discute. O que há neste momento é a suspeita de que o Presidente queira um terceiro mandato. Para piorar as coisas, o Presidente não vem a público dizer claramente se quer ou não esse terceiro mandato.
Acho melhor dizer que existe mais uma manifestação da falta de respeito pelas instituições republicanas que, infelizmente, é cada vez mais característica das nossas elites políticas e, sobretudo, deste governo. É uma falta de respeito que, no fundo, revela uma total desconsideração pela sociedade, pelas pessoas e, em última instância, por si próprio. Note que eu não tenho nada contra uma discussão desse assunto. Não considero boa a ideia dum terceiro mandato, mas toda a discussão honesta de assuntos que nos dizem respeito é sempre bem vinda em qualquer sociedade que se preze. Deixar um assunto desta natureza pairar no ar sem dizer nem sim, nem não mostra apenas a falta de respeito pelo país.
NP: No meio dessa toda (in)certeza, que papel têm os partidos que fazem a oposição?
EM: Em qualquer circunstância, o papel dos partidos de oposição é sempre o mesmo. É o de olhar para o que precisa de ser reformado ao nível institucional e de organização do poder para que o país seja viável. A questão que cada vez mais se impõe é de saber se o nosso sistema político está organizado de forma adequada para permitir que a oposição assuma o seu papel.
Infelizmente, este não é o caso e isso é o resultado da forma como temos gerido a “paz”. Reconheço aqui um equívoco meu em tempos quando achei que talvez fosse bom que o partido no poder pura e simplesmente ignorasse os partidos de oposição e se concentrasse na organização do Estado para que este fosse operacional. Não tomei em consideração os efeitos perversos duma certa cultura política dominante no seio do partido no poder.
É uma cultura política assente na ideia de que todo o poder que não lhe pertence é ilegítimo e contrário ao interesse “nacional”. Isso faz com que a governação esteja mais virada à criação de condições para a monopolização do poder, o que significa polarizar, por um lado, isto é apresentar toda a opinião diferente como afronta e manifestação de falta de patriotismo e, por outro lado, enfraquecer a oposição, isto é fazer tudo para que a sua voz não seja ouvida, ou se for, que o que ela diz pareça algo totalmente imbecil.
O que o partido no poder ignorou neste processo é que esse tipo de postura produz condições que corroem esse poder. Pense nas dívidas ocultas, por exemplo. A sentença do Juiz Baptista revela, na descrição da forma como o projecto foi pensado e implementado, claramente este perigo. Cada passo daquele processo foi formalmente certificado pelas instituições de direito desde o ministério das finanças, passando pelo banco de Moçambique, conselho de ministros até ao parlamento.
O que é que isso nos diz? Diz-nos que aquilo que faz uma República, portanto, o controlo de quem exerce o poder, está completamente ausente. Enfraquecer a oposição sem que se criem condições de controlo de quem exerce o poder, pelo menos no seio do partido no poder, é irresponsável. Vemos o mesmo padrão agora com a violência contra o estado em Cabo Delgado. Suponhamos que o governo não esteja à vontade com o acordo de extradição com o Ruanda. Como é que vai recusar se o Ruanda sabe que a oposição não conta e que vozes dissidentes dentro do partido também não contam? O poder absoluto destrói absolutamente. Nós estamos a pagar a factura de nunca nos termos preocupado com o reforço da oposição. Uma oposição enfraquecida não é boa para quem exerce o poder e, em última instância, para o país.
NP: Já agora como vê a oposição em Moçambique?
EM: Bom, espero que a minha visão tenha ficado clara na resposta à pergunta anterior. Vejo essencialmente duas coisas. Por um lado, uma oposição vítima de processos activos de enfraquecimento iniciados e postos em prática pelo partido no poder. O resultado perverso deste enfraquecimento da oposição não é necessariamente a fragilidade da oposição – embora esse também seja o caso – mas sim a corrosão das instituições republicanas.
Por outro lado, porém, temos uma oposição que emula, internamente, a mesma cultura política que caracteriza o partido no poder. A Renamo, por exemplo, parece ter deixado de ser um partido político – se é que alguma vez o foi – e passou a ser uma espécie de sindicato para a reivindicação de direitos particularistas. O afinco com que a Renamo trata o assunto do DDR – com toda a legitimidade, claro – contrasta vivamente com a ausência de reflexão sobre a violência contra o estado em Cabo Delgado, desastres naturais, segurança alimentar, etc. É como se não houvesse outro problema no país fora do DDR.
Não percebo porque os partidos de oposição não cultivam o hábito salutar de se aproximarem aos académicos e às organizações da sociedade civil para pedirem opiniões abalizadas sobre certos assuntos. Sei que por causa da nossa cultura política de polarização existem muitas pessoas que não haveriam de querer ser vistas ao lado de certos partidos de oposição. Sei, contudo, também que há cada vez mais gente aberta a isso, pois todos nós vemos a desorientação de quem nos governa. Eu não sei, por exemplo, o que a oposição pensa que devia nortear a gestão de desastres. Não sei o que ela pensa sobre como corrigir os problemas na educação. É um alheamento total!
NP: …temos as vozes da sociedade civil. E hoje, a sociedade civil diz que se sente ameaçada e exige a revisão da Lei das Associações…
EM: Sim, essas vozes existem e fazem alguma diferença. A principal diferença que fazem é mostrar aos membros decentes do partido no poder que se eles não criticam o que consideram errado no seu partido não é por medo de represálias. É por aparente indiferença à sorte da esmagadora maioria dos moçambicanos. Também não é por oportunismo. É simplesmente porque para eles a coesão do partido é mais importante do que o bem-estar da maioria dos moçambicanos.
Agora, é verdade que a sociedade civil não é também o remédio para tudo, a panacea, por assim dizer. Há um defeito estrutural que coloca limites ao potencial político e cívico das organizações que compõem a sociedade civil. É que elas são na sua maioria organizações profissionais, não cívicas. O lado cívico surge como produto da necessidade de auto-reprodução: elas vendem os problemas do país no estrangeiro como forma de se auto-reproduzirem. Sem querer ser mesquinho e talvez mesmo injusto em relação à dedicação e o empenho das pessoas que operam nesses meios, diria, mesmo assim, que existe uma grande diferença entre ser uma organização que luta contra a corrupção, dum lado, e ser uma associação de contribuintes que se bate pela integridade pública, doutro lado.
Só a advocacia não faz uma sociedade civil robusta. É preciso que os grupos de interesses se organizem e se articulem em seu próprio nome e, acima de tudo, que as pessoas que estão à frente das organizações estejam lá porque as pessoas em cujo nome elas falam as colocaram lá. Ainda estamos distantes disso.
NP: Como um perito em Sociologia, como vê a situação do Norte…
EM: Bom, eu vejo a situação no norte a partir da maneira como o nosso governo a aborda. Vejo tudo o que está errado na nossa concepção de governação. Nós reduzimos a governação à resolução dos problemas do povo quando, na verdade, a governação cria condições para que problemas sejam bem definidos e resolvidos por todos nós.
Então, quando há violência armada contra o Estado, a questão que se deve colocar não é necessariamente do restabelecimento da segurança – embora isso seja importante, claro – mas sim a questão de saber o que não está bem no nosso sistema político que permitiu que se chegasse a esse ponto.
Sobre isto nunca ouvi nada do nosso governo. Correu logo a convidar grupos mercenários privados e quando estes não deram conta do recado recorreu a mercenários estatais em condições intransparentes e, pior ainda, sem uma indicação clara da estratégia geral para lidar com o problema. Portanto, o problema do norte é o problema de uma concepção extremamente problemática da governação.
Não acha estranho que o governo não incentive nenhuma reflexão coordenada e sistemática sobre a violência naquela região? Não se fala do tipo de forças de defesa e segurança que devemos ter; não se fala de como protegermos os direitos humanos nas zonas onde a violência ocorre; não sabemos quantas famílias moçambicanas estão a perder os seus filhos alistados para o exército; não sabemos como se obtém o dinheiro para o equipamento das nossas forças e como e onde o material é comprado. Não sabemos nada, absolutamente nada.
Não acho isso normal. Acho tudo isso uma demonstração – se é que ainda precisávamos de alguma – duma concepção extremamente problemática de governação. Somos uma República sem governantes com espírito republicano. Isso raramente dá certo.
NP: A via militar é a mais eficaz para este conflito?
EM: A via militar nunca é a mais eficaz para terminar qualquer conflito que seja. Ela é apenas um acessório à via política. Esta última pode consistir na identificação dos líderes da insurgência e negociação com eles, na identificação dos problemas de base que precisam de ser corrigidos – refiro-me ao nível de como funcionam os órgãos do estado ao nível local, etc.
Nesta altura do campeonato, já devíamos estar a discutir a natureza do nosso estado, a forma como a exploração de recursos pode pôr em perigo as instituições locais, a nossa fragilidade perante redes criminosas – de drogas, madeiras, minérios, etc. – a falta de articulação com as comunidades, etc. O que vemos, antes pelo contrário, é a constante celebração de vitórias pírricas. Regista-se como sucesso que só tenha “sobrado” 250 insurgentes… é o exemplo mais dramático de bater no fundo do poço como comunidade política: festejamos a liquidação física de seres humanos. É a barbárie.
NP: Tem confiança no Ruanda?
EM: Digamos assim: a vinda de tropas ruandesas sem a devida discussão pública, nem transparência em relação aos termos desse gesto de “amizade” entre os dois governos – ou presidentes – foi uma das maiores demonstrações de falta de respeito pelos moçambicanos manifestada pelo nosso governo. O que piora as coisas é que o Ruanda do Presidente Kagame não é flor que se cheire.
É um regime autocrata sem o mínimo de respeito pelas pessoas. É uma vergonha que o nosso governo nos tenha imposto esta “amizade” sem nos dar a oportunidade de dizermos o que pensamos. Eu confio no Ruanda como país que existe em África. Não confio no Ruanda como quintal de Kagame. Um indivíduo que manda matar opositores políticos nunca devia ser amigo de Moçambique a não ser que a gente se identifique com esse tipo de práticas.
As notícias que vamos recebendo segundo as quais empresas ruandesas vão ganhando contratos lá no Norte são preocupantes. Eu nem descarto a possibilidade de a presença do Ruanda lá poder servir para alimentar ideias secessionistas. Eu não consigo compreender como um partido com a história que a Frelimo tem, com os quadros que ela tem, e com o discurso de unidade nacional que ela gosta de apregoar foi capaz de deixar que isto acontecesse. Aliás, compreendo. Enfraquecida a oposição e sem o devido controlo do poder – com uma Comissão Política que mete pena se comparada com a memória que alguns de nós temos dos famosos “Bureau políticos” – era de esperar que esta corrosão acontecesse. É como se a Frelimo se tivesse dado xeque-mate a si própria.
NP: Que tipo de sociedade somos hoje – olhando para as peripécias do nosso dia-a-dia…
EM: Essa pergunta é uma armadilha. Ela encoraja-nos a fazer um contraste fictício com um passado idelaizado. Era esta a minha oportunidade de dizer que somos uma sociedade sem valores morais e por aí fora. Toda a sociedade é o que ela é, nem boa, nem má, apenas uma obra em construção. Nós encontramo-nos ainda no início dum processo de construção de Estado e isso afecta, naturalmente, a própria estabilidade cultural e normativa da sociedade. 50 anos de existência não são suficientes para dizermos com segurança que tipo de sociedade somos ou o que estamos a fazer mal que não fazíamos no passado, ou que fazíamos melhor no passado. Portanto, eu diria que somos uma sociedade à procura de si própria. E isso é normal.
NP: Mudemos de assunto, como vê o actual ensino superior em Moçambique?
EM: Creio que é o melhor que podemos ter nas circunstâncias actuais. Podia ser melhor, mas também estando como está não constitui necessariamente atestado de incompetência. O ensino superior é mais do que o que se ensina e de como se ensina nas universidades. Ele é o ensaio constante do que uma república é: a interpelação crítica de quem exerce o poder. O ensino superior ajuda a melhorar a qualidade do debate na esfera pública. Agora, se o que mais se receia no nosso país é o exercício da liberdade de expressão, como é que vamos ter um ensino superior melhor? Donde virá a massa crítica se os académicos têm que sempre ter consciência do que se pode dizer e do que se não diz?
Com isto não quero dizer que esteja tudo mal no ensino superior. Aliás, o que não nos falta no país são pessoas inteligentes. O nosso ensino superior está cheio desse tipo de gente. O problema é o contexto dentro do qual essas pessoas devem operar, um contexto hostil à liberdade do espírito.
NP: Temos corrupção até dentro das universidades. Certificados falsos, assédios, pagamentos ilícitos, etc. Que análise faz?
EM: Essas coisas não são necessariamente reflexo da má qualidade do ensino superior. Creio que são mais o reflexo do próprio país. Não é consertando o ensino superior que isso tudo vai desaparecer. É consertando o país que haverá menos incentivos para essas práticas nos vários sectores.
NP: O que nos resta? Onde buscar a esperança! O que podemos fazer para transformar o país?
EM: Um país é sempre a nossa vontade de sermos o que gostaríamos de ser. Isso veio com uma pequena etiqueta de preço. Se quisermos ser o que gostaríamos de ser, devemos ter a coragem do exercício da cidadania. Sem cidadania o país não pode existir. O que noto, infelizmente, sobretudo nas hostes do partido no poder, é que muita gente parece ter desistido disso. No princípio animava julgar-se parte dos ganhadores. Hoje muitos estão a pagar caro essa complacência, pois já não têm voz, expressão nem mesmo esperança. O cerco apertou-se em volta dos que se consideram decentes, pois cada vez mais têm que documentar essa decência pactuando com tudo o que parece inviabilizar o país, dum modo geral, e os valores da Frelimo, de modo particular. Ou. a pessoa se torna cúmplice de forma activa – contribuindo para o esvaziamento do sentido das palavras através de discursos que não respeitam o sentido real das palavras – ou se torna cúmplice de forma passiva rindo-se em privado das mentiras
NP: Com qual país sonha, Professor…
EM: Eu sonho com o país que a independência devia ter trazido: um país em que se respeita a dignidade humana. Isso só é possível com a promoção activa da cidadania. É o que tento fazer exercendo essa cidadania porque acredito que Moçambique ainda é possível, apesar de tudo o que os que detêm o poder fazem para inviabilizar esse sonho. Neste momento, o verso que todos nós devíamos sempre ter presente do nosso hino nacional é o que nos recorda que nenhum tirano nos irá escravizar. Moçambique vai deixar de ser possível no dia em que nos esquecermos disso.
#Pinto Cossa (Novo Postal)
Parabéns ao Sérgio Raimundo pela iniciativa, Professor é sempre professor obrigado pela grande contribuição Moçambique precisa de mentes abertas pois ajuda a despertar sentido real da cidadania.