Muitos chamam-lhe como “Mamã Teatro” e, pelo percurso e pelo tempo, não me admiro que alguns venham a chamar-lhe de “Vovó Teatro” como expressão de carinho e reconhecimento dos seus feitos que vem desde o longínquo ano de 1975. Porém, recuso-me a chamar-lhe assim, porque fomos companheiros dessa longa e sinuosa estrada que começou coincidentemente com o bradar da nossa liberdade, a Independência Nacional.
Curiosamente, navegamos sempre em rumos diferentes, mas com o mesmo ritmo de passos e juntos atracamos no mesmo porto como dois navios. Às vezes, como bons filhos do vento, cruzámo-nos em diversas ramagens – ora para acertarmos a direcção do nosso voo comum, ora para concertarmos estratégias que nos deixassem firmes em todos os nossos voos.
Conheço, tão bem, as escadas de espinhos e as barreiras que teve de ultrapassar com a estafeta da coragem na mão. E por isso, permito-me, e permita-me, que a chame de Guerreira Teimosa das Artes Dramáticas.
Mas quem é a Manuela Soeiro, a quem me pediram para apresentar à esta nobre plateia como forma de testemunho do seu grande percurso? Contudo, estou certo de que haverá outros que o podiam fazer melhor que eu. Todavia, a sorte ou o azar coube-me a mim.
Maputo era ainda Lourenço Marques quando, em 1945, nasceu a Guerreira Teimosa. É tão teimosa que se diz natural de Ibo, talvez tenha inventado um pequeno Ibo em Maputo. Como escreveu o jornalista e escritor Carneiro Gonçalves, em 1969, no Notícias da Beira, “mais do que o local onde pela primeira vez abrimos os olhos para a luz do dia, a nossa terra é aquela onde nascemos para as emoções do mundo”. Talvez tenha sido no Ibo que a Manuela nasceu para as emoções do mundo.
A senhora Amélia Salomão Jalik, sua mãe que era natural de Lourenço Marques, quando estava prestes a dar à luz comprou passagem de navio rumo ao destino desejado, Ibo, a terra do Abílio de Lobão Soeiro, seu pai. Todavia, no navio, a meio do caminho, concretamente em Maxixe, sentiu-se mal e pediu boleia de camião que a fez regressar a Lourenço Marques, onde a Manuela Soeiro veio a nascer.
O percurso dela, donde passou, o que fez e o que deixou de fazer, onde estudou e as brigas e humilhações que sofreu com o colono, deixo isso para os outros ou para outras ocasiões. Não se pode falar, em poucos minutos, do percurso de uma Guerreira: seria uma batalha totalmente perdida.
Já na fase adulta, em Lourenço Marques, Manuela Soeiro, formada em Ginástica Desportiva, foi protagonista da primeira exibição de ginástica massiva envolvendo centenas de estudantes que evoluíram no Estádio da Machava num acto que marcou a abertura dos primeiros Jogos Escolares de Moçambique Independente no longínquo ano de 1976.
Nessa época, o teatro que se fazia estava inserido no espírito mobilizador e de formação do dito Homem Novo. Era um teatro de circunstância, marcado pelo imediatismo; um teatro de intervenção e de criação colectiva, ou sem assinatura dos autores. Nesta senda, o Grupo Cénico das Forças Populares de Libertação de Moçambique destacou-se por brilhantes apresentações, uma das quais “Javali, Javalismo”, uma espécie de crítica e autocrítica ao comportamento de alguns membros da hierarquia militar e mereceu pesadas honras de primeira censura.
No início da década de 80, ainda na grande efervescência de actividades culturais, a Manuela Soeiro tornou-se gestora do Teatro Avenida e juntou-se a um movimento dos amantes de teatro que apresentaram a peça “Gota d’água” de Chico Buarque, dirigido por Martinho Luthero, tornando-se assim na primeira super-produção da responsabilidade da Manuela. Animados pelo sucesso da obra, o Grupo, na verdade sem nome, apresentou com êxito a peça “Xiluva”, também com a produção da Manuela Soeiro. Já com os credenciais ganhos, os artistas decidiram criar um grupo que se chamou “Tchova Xita Duma”. Este grupo tinha como encenador José Pinto Sá.
Os artistas tinham a sede de se constituir como grupo amador e com propostas de apresentar peças de autores portugueses e de outras nacionalidades. A nossa Manuela, teimosa que é, mostrou-se desinteressada em embarcar nesse projecto. Ela pretendia criar um grupo profissional que apresentasse peças moçambicanas ou no mínimo inspiradas na nossa realidade. Era o início da tomada de consciência de uma identidade própria que não era apenas feita de cultura importada da velha Europa, mas que já necessitava de se ver reconhecida na sua especificada de cultura africana, com um sotaque no português que distinguia a sua fala da europeia. Foi deste modo que a Manuela Soeiro abandonou aquele grupo e convidou alguns actores como o João Manja, Victor Rapouso e Elisa Mausse para criarem um grupo profissional, em forma de uma cooperativa, que deram o nome de “Mutumbela Gogo”. Juntaram-se ainda a este projecto Evaristo Abreu, Lucrécia Paco, Graça Silva, Margarida Manja e Adelino Branquinho e invadiram o palco, pela primeira vez, com a peça infanto-juvenil “Qual é a Coisa, Qual é Ela?”.
Foi daí que a Manuela Soeiro convidou o escritor Mia Couto que escreveu a peça “Quatro Peças Para um Cenário Roído ou o Funeral de um Rato”, fazendo a transição de um teatro de intervenção ideológica e social reflectindo a política dominante na altura, para um novo teatro em que o factor estético e literário, como o sentido sociopolítico da mensagem envolvendo o espectador e apelando a todas as suas potencialidades como Homem e como cidadão para uma atitude crítica foi-se tornando realidade.
Foi com esta peça que o Mutumbela Gogo, como grupo profissional, leva a Europa, pela primeira vez, a arte de representar. As suas exibições em Portugal foram acolhidas de uma forma estrondosa, ovacionado em pé durante vários minutos com o público recusando-se sair da sala.
Estava marcada a história de sucesso deste grupo, estava aberta uma nova página do livro do nosso teatro. Isto deveu-se ao cometimento da Manuela Soeiro e a generosa disponibilidade de Mia Couto, bem como ao talento e persistência dos actores que integravam ao grupo.
Movida sempre pelo desejo de apresentar obras genuinamente moçambicanas, a Manuela, ela própria, encenou “As Mãos dos Pretos”, escrita por Luís Bernardo Howana e que foi um grande sucesso. Também encenou o “9 Hora”, do poeta Rui Nogar, onde trouxe ao de cima a experiência de ter vivido em Ka-Lhamankulo e Malanga, para imbuir os personagens na sua caracterização psicológica e ambiental para reflectir de melhor maneira o poema memorável de Rui Nogar.
Depois veio a parceria e colaboração com o dramaturgo Henning Mankel que consolidou a opção estética e filosófica da Manuela de desenvolver um teatro genuinamente moçambicano, baseado na poesia e nas narrativas ligadas ao real dramático do nosso quotidiano, fazendo chegar ao público, a quem o livro não chegava.
A transformação do discurso literário para o discurso dramático sem a erudição e a retórica baseada nos modelos do teatro clássico europeu, usando recursos tradicionalmente ligados aos códigos de comunicação dos espectadores permitindo a função catártica do teatro, constituiu a chave do sucesso do Mutumbela.
Falar da Manuela Soeiro seria uma história que nunca mais acaba. Sem pretender fazer o CV dela, direi, para terminar, que esta nossa Teimosa das Artes Dramáticas conseguiu levar o teatro moçambicano para vários países como Portugal, Espanha, Itália, França, Alemanha, Brasil, Argentina, Índia e China – para além de facilitar a ida de vários grupos de teatro para o estrangeiro sob sua indicação.
Esta Manuela, hoje já com setenta e tal anos, ainda respira vida e continua activa no mundo das artes, empreendendo, como no caso de SABURA, um projecto novo e ambicioso ao serviço das artes e cultura, que funcionará como escola, Museu de Teatro e um lugar de excelência para eventos e iniciativas culturais.
Como disse no início, Manuela e eu trilhamos os mesmos caminhos. No associativismo estamos juntos, ela como presidente e eu como vice-presidente, contribuindo através da Associação Moçambicana de Teatro (AMOTE) para unir e elevar o nível de teatro praticado pelos grupos do nosso país. Nesta associação encontramos jovens sedentos em aprender com a nossa experiência, que nos cobrem de abraços fazendo-nos sentir úteis, atitude que rareia nestes dias.
Manuela e o Mutumbela formaram dezenas de actores com nomes sonantes e dezenas de grupos de teatro espalhados pelo país. O nosso teatro, hoje, deve a esta mulher que eu a chamo de Teimosa das Artes Dramáticas.
Haverá maior exemplo que testemunha a grandeza desta mulher que hoje recebe mais que um reconhecimento? O Estado e o Município já se curvaram a ela. Mas o grande e o maior reconhecimento é de certeza a que ela recebe directamente do público que não se cansa de aplaudir todas as produções do Teatro Avenida.
De certeza há muito e muito mais que se pode dizer desta grande Guerreira da Artes Dramáticas, porém por, hoje, paro aqui. E como mandam as boas regras do teatro, deixo o palco para os outros.
#David Abílio