O céu azul hoje, em Lisboa. Debaixo dos pombos que não se fartam de disparar enquanto pulam de colina em colina, um ar frio que esvazia as veias da cidade. De verdade, um azul límpido, resplandecente e fofo como os bebés quando acabados de vir ao mundo. De verdade, o céu azulinho. O metro em greve durante o dia todo, meu bom Jesus. Janeiro é uma bofetada de frio no rosto da cidade, folhas secas a povoarem as calçadas e ventinho violento a sacudir as árvores.
Desde a semana passada que ponho os pés a palmilharem as ruas da cidade. As manhãs mais frias que o corpo de um morto. Quarenta e seis minutos, sem pôr nem tirar. Caminho pelas ruas de Lisboa como um divino peregrino que piamente espera alcançar alguma graça com o sacrifício imposto aos pés. De Saldanha até Alfama.
O metro e os comboios andam com a treta das greves e não suporto o autocarro, porque ao fim de cinco minutos são mil curvas, um mar de tonturas a derrubar montanhas e um miúdo bem-comportado a vomitar mais que um adolescente que passou a noite inteira a deitar para dentro litros de whisky com Redbull em um bar do Cais do Sodré.
Que animais selvagens as grandes cidades quando os transportes públicos param à luz do dia. Da Rua de Dona Estefânia até à Rua Jacinta Marto uma fila de carros com vida própria, confusa e horrenda. Buzinadelas atrozes capazes de ferir um surdo. O desespero a serpentear as paragens. O amarelo do batalhão de autocarros da Carris num esforço silencioso para incendiar a cidade. Um autocarro atrás do outro, uma carrada de pessoas e a pressa a roer-lhes a face branca, preta e mestiça.
No ecrã do meu telemóvel, o email da minha colega:
chegada tardia | Transportes.
Numa das docas das bicicletas, duas raparigas com telemóveis na mão a tentarem adivinhar quem consegue desbloquear primeiro uma bicicleta. Quarenta minutos sem pôr nem tirar. No primeiro dia, caminhei porque o metro em greve. Mas de lá para cá, um verdadeiro encanto desnudar a cidade que amanhece. De lá para cá uma faísca nos olhos, como o brilho que se nos acende quando pela primeira vez dedilhamos cada naco de carne que embeleza o corpo do nosso primeiro amor.
Há mais de cinco anos que moro em Lisboa. Em Maputo, onde nasci e cresci, as pessoas caminham por longas distâncias com uma normalidade assustadora que até são capazes de se ofenderem se eu me orgulhar dos meus míseros quarenta eseis minutos. É caminhando que se aprende a ler o coração de uma cidade.
No meu telemóvel mais um email de uma colega:
a trabalhar a partir de casa | Greve dos transportes.
Durante os últimos dias, o céu cinzento, feio e Lisboa tristonha. De quando em quando, umas gotículas de chuva cá para baixo. As pedras brancas de calcário que vestem o chão da cidade ficam húmidas e mais escorregadias que uma piscina de quiabo. Mas hoje, pela graça de nosso Senhor, o céu muito azul.
As confidências queas manhãs me sopram! Uma mulher adulta e uma rapariga com uma mochila às costas a atravessarem a Almirante Reis; homens de todos os cantos do mundo a parlamentarem, enquanto fumam cigarros debaixo dos andaimes das obras que todos os dias ressuscitam Lisboa; no Largo do Mastro, um calceteiro a pentear a areia com um ancinho antes de montar a calçada; um homem de olhos vermelhos a apreciar as bolinhas que saltitam no copo de cerveja sentado na mesa de um café;barracas de sem-abrigos montadas nas varandas dos prédios; um rapaz parado do outro lado da estrada, com os olhos presos no telemóvel impedindo-lhe de ver que o sinal está vermelho para os carros e verde para os peões; a voz da mulher com o sotaque brasileiro:
um galão e um pastel de natas, por favor.
Se é verdade que para plantar o caos na cidade é suficiente parar o metro e os comboios, para minha tristeza é suficiente arrancarem-me este céu azul que beija a mim e à Lisboa com ternura.
#Miguel Luís